segunda-feira, 10 de junho de 2013

Um belo dia para morrer



No decorrer dos passos, sabemos caminhar para um ponto inevitável de chegada (ou partida, como preferem alguns), aquele que, ao nascer, sabemos que lá estaremos, mas esse é somente um momento deles, porque descobrimos que a vida nos guarda vários instantes de morte, e alguns são de sensação pior do que o final.

Quase sempre, no período de chuva em algumas regiões do Brasil, residências e pessoas  são levadas pelas fortes águas, transformando visceralmente a realidade dos que ficam; e digo visceral porque é uma dor física, um sentimento de pressão alterada, um bater diferente de coração, e um amanhã que não se sabe se chegará diante de tanta perda. Vida presente no abrir e fechar de olhos,  mas sem sinais vitais, um zumbi.

Que morte pior do que o choro da mãe no leito do filho, quando ali não há mais vida? A inversão mais perversa da ordem natural das coisas, porque acreditamos, sem nem saber ao certo o motivo, que os mais velhos partem antes, talvez por terem comprado por mais tempo que nós o bilhete para essa viagem. Essas lágrimas calam fundo, jorram uma dor que é coletiva, pelo filho e especialmente pela mãe, aquele corpo que anda sem mais nada dentro de si.

Há os que conseguiram o tido por impossível: foram...e voltaram. E quem diria  que dá para ir e voltar da viagem sem retorno? Muitos voltam falando como se a experiência fosse um piquenique - "ah! Vi vovó e o tio Ditinho, estão todos bem, só papai com aquela cara séria de sempre, mas feliz!" - ou algo extra-sensorial normalmente representado por sensações e cores. Fato é que para essas pessoas sempre parece animado do lado de lá, tanto...que voltaram.

A morte de gênero mais comum, que acomete a todos ao menos uma vez na vida - assim se espera, caso contrário melhor seria nem ter nascido - é a do amor. Dono de caminhos múltiplos, na morte dói como espinho largo enfiado na parte fina do pé, dói rasgando tudo como úlcera que vem de dentro, como completa ausência de luz no mais ensolarado dos dias, como escalpelamento da esperança.

Dói pior ainda quando a perda é por motivo dado, aí complica mais, porque sentimos a dor da morte e a dor de termos as mãos ainda sujas do sangue fresco daquele amar, e isso corrói como ácido, queima tudo por dentro, gangrena cada célula e, se não contarmos com com o socorro do perdão, do bom senso (e isso lá existe quando se fala de amor?) e por vezes de medicamentos tarja preta mesmo, morremos antes do ser amado, mesmo que ainda caminhemos no dia a dia, tamanho o vazio que fica.

Para esses momentos, mesmo o silêncio da noite, normalmente companheiro para os bons pensamentos, se torna barulhento e te acordo a cada minuto, insônia assassina do momento que deveria ser bem dormido.

Os dias passam, a dor permanece, a morte ali presente, ainda latente nas fotos encontradas nas caixas, nos quadros da sala, o corpo por vezes andando na sua frente ou mesmo longe dos olhos, esbanjando a felicidade que gostarias nos teus braços, mas, como cantou Lupicínio, "hoje nos braços de um outro qualquer", causando mais uma morte, dessas quentes, que vão aos poucos tirando a esperança do viver como câncer doído e terminal.

E eis que a insônia companheira mais uma vez te pega e, ao invés de ter a solidão do colchão e do ventilador como companheiros, encontramos força para acordar na madrugada e esperar o nascer do sol ouvindo ao longe o despertar dos pássaros, a sala é o ponto da observação e o cantar do galo anuncia para todos que chegou o amanhã.

Assim a tal vida transcorre e em algum lugar dentro da gente o corpo parece reagir e, mesmo com a dor presente, dá coragem de caminhar no frescor da ainda quase madrugada com a impressão de que o hoje, que sempre mostra o seguir do tempo, é um belo dia para morrer.

Belém, amanhecer de 01 de junho de 2013.