terça-feira, 21 de setembro de 2010

Veredas da Educação

Como chuvisco salpicado no teto do mundo, as estrelas me receberam sob o céu do Piauí. No interior do sertão mais profundo mora um Brasil de beleza sem igual, sofisticadamente simples e verdadeira, como a solidariedade que encontrei fazendo morada no coração e na vida de bravos cidadãos que habitam aquela região rural da caatinga nordestina.


Capitão Gervásio de Oliveira é o nome do município. Procure no mapa e encontre a cidade debaixo das estrelas e do sol escaldante. Procure no seu mapa pessoal e me ajude a responder a questão que me apanhou, assim como os inúmeros pés de vento encontrados nos mais de 300km percorridos a partir da BR 407, saindo de Petrolina (PE), a  tão festejada "califórnia brasileira". Afinal de contas, a solidariedade nasce mais fácil nas pequenas localidades do que nas grandes cidades? Se nasce, qual o motivo disso?

"As pessoas se conhecem", diria um mais direto. "Existe mais tempo disponível", falaria aquele genérico do coelho de Alice. "É menor", cogitaria um dado ao minimalismo. Fiquei pensando em várias possibilidades e essas breves e ilusórias respostas que listei podem apresentar até alguma lógica, mas não me parecem corretas, porque o fato das pessoas se conhecerem não parece ser o motivo único do nascimento de uma atitude solidária, afinal de contas, conhecemos inúmeras pessoas no decorrer de nosso dia a dia e nem sempre alguma delas nos estimula preocupação. Muitas sequer recebem um desejo de bom dia quando cruzam o caminho de alguns.

Pensei então no fator tempo, este elemento que a tal modernidade parece mais nos ter tirado do que acrescentado, e me parece que acabamos debitando na conta dele, o tempo, muita coisa além do que deveríamos, e pude ver isso em Capitão Gervásio acompanhando um grupo de voluntários de uma empresa de mineração. O tempo ali começa às 06h da manhã e rende bastante, inclusive o tempo da "cabeça quente", porque quem está assim é orientado a ir ao viveiro de plantas literalmente encher o saco que serão utilizados para receber as mudas que nascerão no berçário cuidadosamente montado por aquelas pessoas. Mudas que serão plantadas nas escolas, nas ruas e nas residências dos moradores de lá.

O quesito tamanho parece perder sua razão quando conhecemos diversas ações que foram além mesmo de suas fronteiras para causar diferença na vida de tantas pessoas, e isso se junta à questão de fartura também, porque, por incrível que possa parecer a alguns, do município de Capitão Gervásio de Oliveira, uma região onde a seca reina durante boa parte do ano, saíram 3 toneladas de alimentos doados para as vítimas de enchentes que ocorreram no Maranhão. De dentro daquelas taperas muitas mãos se mostraram mais longas para ajudar o outro do que muitos bairros das grandes metrópoles.

O que vi em Capitão Gervário de Oliveira foi um grupo pequeno de voluntários mobilizando uma cidade inteira, uma comunidade escolar (e aí podem incluir todo mundo mesmo: pais, vizinhos, professores, moradores da cidade, gestores da educação, alunos...) e, sem esperar grandes movimentos além do que eles conseguiram produzir, eliminaram uma das maiores doenças que atinge a educação brasileira, que é o sistema de multisseriado, uma sala de aula onde crianças e jovens de diversas idades estudam juntas temas e programas que deveriam ser ministrados de forma separada. 

Pois foi na solidariedade, no braço, na esperança, no uso do tempo dos finais de semana, na certeza de que isso era importante para todos, que eles levantaram mais 04 salas de aula e aquela escola foi a que mais se destacou no IDEB dentro daquela região. A Secretária de Educação foi a primeira a dizer que isso não era suficiente e que há muito o que fazer ainda, e reconhece que sem a articulação dos voluntários, isso nunca teria sido possível.

Hoje o ônibus escolar atravessa a caatinga para buscar os alunos para a escola, que agora sonham até em ser astronautas, depois dos encontros promovidos pelos voluntários no "Uma história para contar", onde todos os profissionais que visitam a sua unidade de trabalho são convidados a contar uma história (qualquer uma) para os alunos do Núcleo Escolar Renascer Pedro Rodrigues. Devem sair de lá agradecidos por alguém encontrar tempo para conseguirem sentir de perto um Brasil que todos somos unânimes em querer ver transformado.

Ali, como em qualquer lugar, grande, médio ou pequeno, o que fez diferença foi o sentido. Para esses bravos voluntários que atuam no Projeto Níquel do Piauí, o destino daquelas crianças se faz por meio da educação e é a partir dela que poderão alcançar as oportunidades para desenvolver seus talentos próprios, indo além do destino que a vida parece lhes infligir, e mesmo sem saber exatamente, cumprem um princípio básico de nossa Constituição que diz que é dever do Estado, da família e da sociedade zelar pelo bem estar dessa parcela da população. 

Quando estive lá, era dia de paralisação na educação do município, mas para aquela escola o ônibus passou, os alunos foram lá e eu pude ver diante de mim um capital social brotando, uma vida que aguarda, assim como toda a vegetação da caatinga, um pouco de água e de solidariedade para brotar. Não é tamanho, não é tempo, não é conhecimento que faz com que sejamos solidários, mas sim o sentido, a compreensão, o entendimento de que algo é importante não só para mim, mas também para o outro, porque estamos unidos no princípio de humanidade.

Toda minha admiração a esses bravos cidadãos brasileiros que integram o Projeto Níquel do Piauí, aos educadores que acreditam nos seus alunos, aos gestores que lembram sua missão maior, e aos alunos que se permitem florescer na aridez do improvável.

6 comentários:

  1. Bom te ler e ver o que pouco os olhos veem. Veredas de solidariedade e esperança fazem crescer mãos, braços e plantações de humanidade. Crianças parecem voar, trazendo brisa à seca que vai além do chão.
    Parabéns pelo trabalho e andanças.

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  2. Como disse Claudinha: "sempre bom te ler " e ver atraves de seus olhos esse Brasil que nos faz lembrar que somos um povo !

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  3. Ola amigo.
    meus parabens pela materia sobre esta escola de capitão gervasio oliveira, eu conheço pessoalmente esta escola e o prjeto que foi desenvolvido la no municipio juntamnete com os funcionarios da vale e a comunidade todos juntos nos finais de semanas até eu nas minhas ferias quando fui visitar parentes e amigos la em c-g-o ajudei um pouquinho como voluntario num belo sabadão de sol.

    são açoes como estas que podem mudar nosso pais. parabens a todos os envolvidos neste lindo projeto.

    tico são paulo sp

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  4. Ei, Tico! Que bom saber que estiveste por lá e conheces esse trabalho. Realmente eles são especiais e conseguem nos ensinar muito sobre o quanto podemos alterar essa realidade que tanto criticamos. Podemos muito, com um mínimo de atitude, não é mesmo? Volte sempre por aqui. Abraço.

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  5. Edney, lendo o seu artigo inspirado, reconheci o que senti naquela linda escolinha. Virou escolinha para mim, porque não posso - e tampouco quero - me esquecer dos olhos das crianças. A alma delas estava ali, à tona, brilhando de esperança, sonho, vivacidade: era pura pulsão de vida. Senti tanta coisa junta, tinha sido profundamente tocada, como uma personagem de Clarice Lispector. Então, voltei para Belo Horizonte, à vida árida e cáustica do "sem tempo",sem humanidade, sem mim. Mas voltava outra, cheia daquele encanto, cheia de respeito, de responsabilidade e, como que para sempre, ligada àquele lugar, à linda escolinha, aos olhinhos cintilantes. Tinha vivido um daqueles momentos em que o outro nos dá exatamente o sentido. Devo isso aos voluntários, impressionante e admiravelmente perseverantes, contagiantes - e felizes. Por quê? Simplesmente porque exercem a virtude. E você - já me parece - é um deles.

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  6. Josete, tuas palavras me emocionaram como a experiência de ter ido ali naquele canto do Brasil e descobrir o mundo que mora em cada criança daquela. Aproveito para te abraçar com estas palavras e dar parabéns pela beleza do trabalho e da poesia que compartilhaste com elas. Esse trabalho é lindo demais!

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